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Arquitectura

O arquitecto Domingos Tavares com a sua «Cidade de Pedra" -Foto Diego Delso Wikimedia

Porto, uma "Cidade de Pedra" desde sempre

16 de outubro de 2024

O livro "Cidade de Pedra", apresentado esta quinta-feira, conta a história da arquitectura urbana do Porto, desde o granito dos castros até aos dias de hoje, explanou à Lusa o autor, o arquitecto Domingos Tavares.

Nascido em 1939 e natural de Ovar, o professor emérito da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto recorda que, quando ia de comboio para o Porto, "tinha sempre o drama de passar o túnel [até São Bento] por causa do fumo", e a sua "leitura geral do Porto era essa, de uma cidade escura, em que a arquitectura é tudo pedra escura".

O título do livro da Dafne Editora reflecte essa cinzenta percepção de "nevoeiro", explica, apesar de ser "interessante observar, agora, que a pedra do Porto é amarela clara" apenas oxidada pelo tempo.

Para Domingos Tavares, a primeira urbanização do Porto dá-se entre o que são hoje as zonas da Ribeira (Portus) e a Sé (Cale) - nomes que vieram dar nome a Portugal - em que os primeiros povos castrejos ainda aproveitam as técnicas do corte da pedra dos romanos, que depois impulsionam a cidade.

Os romanos não desenham "uma malha, uma matriz, porque não tinham espaço, nem gente, nem dimensão", pelo que o desenho urbano seguia um "princípio instintivo e não o princípio geométrico de rua", refere, apesar de, na Sé o esboço medieval ter "uma malha relativamente reticulada".

De resto, a Sé original é "descrita, no período dos primeiros bispos [...], como uma pequena construção que parece ser uma basílica original romana".

Com o fim do império, a tese de Domingos Tavares é que "não se passa nada" no Porto nos séculos seguintes, porque "a actividade económica cai" e "a população dispersa à procura da sobrevivência" e, entre pilhagens, suevos e visigodos, "foram duzentos anos" em que a então Portucale "não teve circunstâncias favoráveis para chegar a ser muçulmana".



Sé do Porto - Foto de I Henrique Matos em wikimedia


A importância da Sé

"No momento em que começa a haver interesse pela reconstrução e reconstituição do comércio na cidade", chega o burgo episcopal, identificado como "uma unidade urbana saída das circunstâncias políticas e militares decorrentes da 'reconquista'".

Na cidade muralhada, já cristã em cima das ruínas romanas, quem fica de fora paga imposto, "mas quem tira benefício são os que estão lá em cima", literalmente na Sé, ou seja, "o bispo, os padres, os servidores".

Para Domingos Tavares, surge aqui "o primeiro arquitecto" da cidade, um "mestre construtor que vem da zona de Limoges [França] para construir a Sé do Porto", com programa à imagem da ordem religiosa de Cluny.

Enquanto os bispos geriam a cidade numa óptica local, protegendo minorias religiosas como os judeus e tendo uma perspectiva comercial, o Porto sucumbe aos primeiros laivos do poder central, no início da nacionalidade, quando os primeiros reis começam "a regularizar o funcionamento do país e não propriamente da cidade".

Com a construção da "fortíssima" muralha fernandina, o Porto era claramente "uma cidade gótica" que ganha "uma escala urbana bem diferente do núcleo tutelar do burgo episcopal", consolidando-se "a força do concelho de bons-vizinhos enquanto instituição municipal com competências de gestão urbana".

"Esta noção de vizinho é uma noção de gente nova", havendo "os bons e os que não são bons", ou seja, "começa-se a destacar a malta rica, que faz mais negócios, que tem mais poder e que se organiza", explica o arquitecto.c

Como a zona ribeirinha "não tem capacidade de crescimento", a expansão urbanística prossegue e D. João I abre a chamada Rua Nova [hoje rua do Infante D. Henrique, na Ribeira], o que "teve como consequência a procura, pelos tipos mais ricos, de fazer casas ali", mas como os mercadores também se passam para a nova rua, geram "um incómodo grande porque os senhores ricos queriam era limpar o seu território".

"Logo a seguir, passam para a zona de São Domingos. É aqui que se começa a dar a grande transformação" urbana do Porto, já que este largo "aparece como centro dinamizador das actividades locais", numa cidade já alargada aos armazéns de Miragaia, para albergar vinho e produtos oriundos do colonialismo.


Domingos Tavares - Foto Universidade do Porto



A «Baixa do Porto» ficou na «Alta»...

Sob a tutela de João de Almada e Melo (o primeiro dos Almadas) abrem-se as ruas de São João, do Almada ou da Boavista, já no século XVIII, quando também é erigida a Torre dos Clérigos.

"O Porto moderno significa a passagem da zona baixa, da zona da Ribeira, para aquilo que eu costumo dizer que é a zona alta, que passou a chamar-se Baixa. A Baixa do Porto é na Alta", explica assim Domingos Tavares.

Segundo o arquitecto, "a estação de São Bento é o ponto final desse processo", à boleia da Revolução Industrial, que "tem um peso muito grande no Porto" com a chegada do comboio, que "entre Campanhã e as Fontaínhas" gera uma faixa que "tem muitas ilhas e muita indústria à mistura", com "população pobre que se concentra em Campanhã e que se vai espalhando, lentamente, para o interior da cidade".

Se no lado ocidental do Porto há "quintais, arvoredos, zonas abertas, interiores de quarteirões", o oriental "é completamente denso", uma diferença entre "a zona mais rica e a zona mais popular", mais próxima ou distante do mar.

Com o passar das décadas, o "muito dinheiro chegado do Brasil" fomenta a actividade bancária na nova Baixa, e à boleia do Hospital Militar (1862), o Porto passa a ser uma "cidade multipolar, com a consolidação de centros sucessivos e concorrenciais, com o núcleo da Boavista a ganhar protagonismo".

A cidade espalha-se com as aberturas da Rua Mouzinho da Silveira, as igrejas da Trindade e da Lapa, as pontes sobre o Douro ou a posterior abertura da Avenida dos Aliados, num movimento que também 'empurra' as indústrias e o porto para a periferia, com a expansão da cidade até à Circunvalação e para fora dela.

O livro "Cidade de Pedra" é apresentado na quinta-feira às 21:30, no Cinema Passos Manuel.