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Opinião

 

A engrenagem

3 de junho de 2020

Uma das minhas obras de eleição de Jean-Paul Sartre é “A Engrenagem”, um livro/peça de teatro que nos conta a história das últimas horas do ditador Jean Aguerra, cercado no seu palácio presidencial por populares que o querem derrubar.

Sartre apresenta-nos um país pobre com petróleo, recurso que é explorado por uma companhia estrangeira, uma concessão dada pelo tirano anterior, que, por causa disso, foi deposto e morto.

No livro, ficamos a conhecer os novos revoltosos que tomaram o poder, com a expectativa de mudança e da nacionalização da companhia estrangeira e a queda desta esperança quando percebem que, afinal, nada pode ser feito para mudar o status quo. Numa verdadeira engrenagem, em que todas as peças desempenham o seu papel, assistimos ao crescimento do descontentamento popular e ao aumento das ameaças externas. E, o até então salvador Aguerra, converte-se, à semelhança do seu anterior algoz, num novo ditador para o seu povo. Até ser, também ele, deposto, julgado e fuzilado. O livro termina com o seu sucessor a receber no palácio a delegação dos operários do petróleo, pronúncio de um novo golpe de Estado.

Em Portugal não temos petróleo, ingerências estrangeiras (por favor não sorrir), ou pretensos ditadores (por favor não sorrir outra vez), mas temos políticas e estratégias que se repetem. Ano após ano. Governo após Governo. Como no sector imobiliário, por exemplo.

Dados da OCDE de final do ano passado davam conta que Portugal era o País com mais proprietários de casas, mas onde havia 735 mil vazias. Segundo este estudo, tínhamos 577 fogos para cada mil habitantes! O estudo mostrava igualmente que um terço das famílias com rendimentos baixos, que recorrem ao mercado de arrendamento, estavam sobrecarregadas com a renda.

Tenho a noção que os números do parágrafo anterior são dados pré-COVID 19, mas, numa análise rápida sobre este tema, percebemos o que está aqui em causa. O mercado de arrendamento não descola, sendo quase “vantajoso” para as famílias empenharem-se num crédito bancário para a compra de uma habitação em detrimento de um arrendamento que, em muitos casos é igual (ou mesmo superior) a uma suposta prestação bancária. Esta decisão faz com que as famílias fiquem reféns das escolhas que tomam e muitas vezes estão acima da chamada taxa de esforço recomendada e presos geograficamente a uma zona porque têm um empréstimo a pagar que se irá arrastar até à velhice.

E porque os Portugueses se encontram numa espiral de endividamento, são muitos os que, infelizmente, acabam por perder a sua habitação, imóveis que acabam por engrossar as listas bancárias de activos alegadamente atraentes. E, em consequência, acumulam-se as casas vazias para vender, as oportunidades para os investidores e o suposto El Dorado para as Imobiliárias, os Fundos e a Banca. Banca que, muitas vezes, despacha estes activos quase em regime de dumping porque, em muitos casos, apenas quer recuperar o investimento. 

O problema é que, todos nós, estamos a ver a parede à frente e continuamos, alegremente, a acelerar em direcção ao muro. Neste momento não são apenas as pessoas que perderam as suas casas. São os bancos, os fundos, os investidores, as imobiliárias que têm em carteira activos que não encontram compradores. As tais 735 mil casas sem gente - e já nem coloco neste espólio as lojas, os terrenos os armazéns ou a febre da construção - que faz de Portugal um imenso deserto de oportunidades vazias.

 Estes imóveis são trabalhados por diversos players, nomeadamente brokers e Imobiliárias, que acabam por ter as mesmas carteiras de activos, uma vez que quem tem estes imóveis não os entrega aos profissionais em regime de exclusividade. Porque acham sempre que é bom ter várias empresas do imobiliário a trabalhar para eles. Ou porque acham que há sempre alguém que tem investidores estrangeiros e fundos e recursos e connections.

Em consequência, vamos assobiando para o lado e aceitando o que temos e podemos vir a ter porque ninguém quer ver o elefante na sala e todos, sem excepção, estamos presos nesta engrenagem. Talvez só até ao dia em que tenhamos a coragem de mudar o paradigma e fazermos com que a nossa revolução tenha mais sucesso que a dos revoltosos de Sartre.

Francisco Mota Ferreira

Consultor Parcial Finance