
José Jorge Paraíso, Senior Adviser, Kalam
O Novo Modelo de Contrato de Empreitada
Introdução
O tradicional modelo contratual de empreitada chegou ao fim. A transferência de risco — e consequente destruição de valor — atingiu o seu limite. Os resultados estão à vista: atrasos, derrapagens, conflitos e perda de margem.
A obra não começa na primeira pá de terra — começa no contrato. E quando o contrato nasce adversarial, a obra nasce condenada, onde cada parte tenta defender-se da outra, de forma litigante, sem alinhamento, movidas pela sobrevivência.
O setor imobiliário continua a debater custos, prazos e risco como se fossem fenómenos inevitáveis da construção. Não são. São sintomas de uma causa estrutural que permanece intocada — o modelo contratual de empreitada.
Durante décadas, esse modelo sobreviveu por inércia, sustentado pela crença de que a transferência de risco equivalia a boa gestão. Hoje, com capital caro, maturidades reduzidas, margens comprimidas e ciclos de decisão cada vez mais curtos, esta lógica não só é insuficiente — é destrutiva. Transferir risco não é gerir risco. É apenas adiá-lo para um ponto mais caro.
O tradicional contrato de empreitada não se limita a falhar a execução, o tradicional contracto falha a intenção. Protege posições, não protege valor!
A transferência de risco, outrora vista como prudência, tornou-se uma máquina geradora de conflito. O setor habituou-se a tratar derrapagens como surpresas e atrasos como fatalidades. Mas a verdade é simples: não há derrapagem imprevisível; há modelos que a tornam inevitável.
Durante demasiado tempo, a relação entre dono de obra e empreiteiro foi construída sobre desconfiança mútua:
• O promotor adjudica a um preço que sabe irrealista;
• O empreiteiro apresenta um preço que sabe insuficiente;
• Ambos tentam proteger-se do outro.
Chamamos a isto empreitada, mas na prática, com mais rigor, trata-se de um pré-litígio com data marcada.
A execução — aquilo que realmente cria valor — aparece apenas como palco onde ambos tentam compensar esta assimetria original.
O setor financeiro mudou — e expôs a falência do modelo atual
Entretanto, o mundo mudou. Os financiamentos alternativos, a poderem atingir 10% a 12% ao ano, tornaram o tempo numa unidade financeira e não cronológica. O tempo deixou de ser prazo: tornou-se um custo direto de capital.
Cada mês perdido não é um contratempo — é uma perda real de rentabilidade, uma destruição direta de margem.
E se o contrato não mede tempo como custo, o projeto nunca terá urgência real.
E enquanto mercados como Reino Unido (NEC4), EUA (Construction Management at Risk) ou Austrália (Contracto Colaborativo), reinventaram os seus modelos contratuais para lidar com esta nova economia e formas de financiamento — Desenvolveram modelos de partilha de risco, visibilidade financeira e decisão rápida, Portugal permanece preso a estruturas que premeiam conflito e penalizam execução.
O setor não falha na obra; falha no desenho dos contratos. E enquanto essa falha persistir, nenhuma inovação tecnológica, metodologia de gestão e avanço regulatório será suficiente para reduzir a imprevisibilidade crónica que tanto aflige o desenvolvimento imobiliário.
O CEI — Contrato de Execução Integrada
É neste contexto que surge a proposta do Contrato de Execução Integrada (CEI). Não como um exercício académico, mas como resposta pragmática a um setor que precisa urgentemente de previsibilidade, transparência e alinhamento.
O CEI não é um contrato mais sofisticado — é um contrato mais honesto.
Reconhece que o risco não se elimina mascarando responsabilidades, mas integrando-as; que o conflito não desaparece com cláusulas adicionais, mas com incentivos alinhados; que a execução não melhora com supervisão hostil, mas com colaboração esclarecida.
O CEI estabelece uma mudança fundamental:
separa a fase de maior incerteza — movimentações de terra, demolições, fundações e estruturas — e fixa o seu preço.
Com isto, protege o promotor no momento mais vulnerável e elimina a principal fonte de variações que historicamente distorcem a economia dos projetos.
Simultaneamente, permite o empreiteiro apresentar um valor fixo, sobre um tema do qual tem obrigação dominar e onde a cadeia de subcontratação deveria ser menos complexa. — onde melhor domina o processo, os prazos e seus custos.
A partir daí, a obra passa para um regime de Open Book total: Não há zonas cinzentas; não há margens ocultas; não há armadilhas contratuais. Há visibilidade, partilha de informação e decisão rápida.
Incentivos que alinha execução — e não conflito
Mas previsibilidade financeira não basta. O CEI redefine a remuneração do empreiteiro. A margem deixa de ser uma variável táctica e transforma-se em elemento estrutural: Fixa, transparente e conhecida desde o início.
E é através do prazo — o recurso mais escasso e mais valioso do setor — que se cria alinhamento:
• O cumprimento do prazo é premiado;
• A antecipação do prazo é ainda mais premiado;
• O atraso no prazo, quando por responsabilidade directa, tem penalização proporcional;
O contracto deixa de remunerar litigância e passa a remunerar execução.
Mecanismos financeiros que eliminam fricção e imprevisibilidade
O CEI incorpora ainda mecanismos esquecidos pelo setor, mas fundamentais para a saúde financeira das obras e já comuns em mercados maduros:
• Pagamentos a 15 dias, reduzindo o custo de capital do empreiteiro e eliminando margens inflacionadas pela incerteza de tesouraria;
• Adiantamentos para fornecimentos críticos, limitados e auditados, garantindo (ex: alumínio, AVAC, elevadores e carpintarias) não atrasarem o caminho critico do projecto;
• Valor mensal de estaleiro e custos indirectos fixados e acordados, eliminando um dos mais persistentes focos de conflito contratual;
Negociação por Qualidade, Capacidade e Estrutura — Não por Preço
O CEI redefine também a forma como se negoceia a contratação de uma obra. Num setor habituado a centrar toda a negociação no preço final e em consequência a “destruir valor”, o CEI desloca o foco para aquilo que realmente determina o sucesso:
• capacidade técnica;
• estrutura operacional;
• previsibilidade económica;
• qualidade dos fornecedores que compõem a cadeia de execução;
Em vez de negociar a obra como um bloco único, o CEI eleva a discussão para o nível granular — valores unitários, fornecedores e fornecimentos críticos, lógica de procurement, plano de trabalhos, plano de comprar e fornecimentos, cronogramas financeiros e económicos de obra. É nestes elementos que se revela a consistência económica de um projeto. É aqui que se identifica e otimiza o custo e desempenho.
Nesta abordagem, o preço deixa de ser uma arma negocial e passa a ser um diagnóstico técnico, validado com rigor. No CEI negocia-se apenas aquilo que deve ser negociado, depois de encontrado o parceiro com os melhores atributos técnicos para empreitada:
• A margem a oferecer ao empreiteiro;
• O custo de estaleiro mensal;
• A margem para custos indirectos associados;
e, naturalmente,
• o valor associado à fase de preço fixo correspondente à etapa estrutural da obra.
A negociação torna-se assim mais curta, mais clara e mais técnica — e deixa de abrir espaço à erosão de preço que, historicamente, destrói valor e cria terreno fértil para conflito posterior.
Mas talvez o maior salto qualitativo esteja no conteúdo das propostas.
Num CEI bem executado, uma proposta não é um número: é um documento operativo. É forte pelo seu plano de trabalhos, pela lógica de sequenciação, pelo mapa económico detalhado, pelo mapa de compras e fornecimentos, e pela capacidade demonstrada de controlar o caminho crítico desde o primeiro dia. São estes elementos — e não o preço final — que distinguem a capacidade de executar com rigor, qualidade e prazo.
O CEI não elimina a negociação — eleva-a. Transforma-a numa avaliação de capacidade real, e não de promessas comerciais. E num setor onde o custo do tempo e do risco financeiro é hoje determinante, esta mudança deixa de ser uma opção: torna-se uma necessidade económica.
Gestão de risco justa e moderna
Nas incompatibilidades de projeto — uma das maiores fontes silenciosas de litigância — deixam de ser assumidas unilateralmente.
No CEI, há prejuízo partilhado, porque:
• Nem o dono de obra controla toda a complexidade do projecto;
• Nem o empreiteiro controla as falhas conceptuais do mesmo;
Surge assim a corresponsabilidade como substituto de conflito.
Governação: a peça que faltava
O CEI exige também uma arquitetura de governação que o setor abandonou ao longo das ultimas décadas, algures entre os anos 90 e a Era das externalizações excessivas:
• um COO com autoridade real;
• um PMO interno;
• um comité semanal de decisão;
• métricas objetivas de desempenho;
A obra deixa de ser um campo de disputas e passa a ser uma organização operacional que responde a critérios de eficiência.
Uma mudança cultural
Mais do que um modelo contratual, o CEI é uma mudança cultural. Exige que empreiteiro e dono de obra deixem de se ver como adversários inevitáveis e passem a actuar como parceiros técnicos, alinhados pelo valor que ambos só conseguem gerar se a obra for executada com rigor, velocidade e clareza. O futuro do setor não pertence a quem contrata mais barato, mas a quem executa melhor.
E execução não é improvisação — é método, informação e contrato.
Conclusão
O setor discute prazos, custos e risco, mas evita discutir aquilo que realmente os cria: o modelo contratual.
Enquanto isso persistir, estaremos condenados a repetir resultados previsíveis, embora invariavelmente apresentados como surpresas.
O CEI não resolve todos os problemas da construção — nenhum contrato o conseguiria.
Mas resolve o mais profundo: cria um ambiente onde a execução é possível, previsível e financeiramente inteligente.
E num mercado onde o custo de capital torna o erros muito caro, esse ambiente, mais do que bem-vindo, é indispensável.
O contrato é o primeiro ato de gestão de um projeto — e talvez o mais determinante. O segundo acto, é a figura do COO, descrita no meu anterior artigo.
José J. Paraíso
Senior Adviser, Kalam
*Texto escrito com novo Acordo Ortográfico












