
Francisco Mota Ferreira
Prometer casas é mais fácil do que construí-las?
Não existe em Portugal uma só crise da habitação. Acredito, cada vez mais, que temos várias e para todos os gostos. Senão vejamos: há quem diga que faltam casas, há quem jure que há imóveis a mais, há quem defenda que o problema são os estrangeiros, os vistos gold, ou os alojamentos locais. E há ainda quem acredite, com uma espécie de fé quase religiosa, que se as Autarquias comprarem umas casas, tudo se resolve.
À medida que outubro se aproxima e com ele as eleições autárquicas, começa o habitual desfile de promessas, obras apressadas e soluções mágicas. Algumas Câmaras Municipais decidiram meter mãos à carteira (pública, obviamente) e comprar imóveis no mercado para dizer ao eleitorado: “Estamos a fazer alguma coisa”. O problema? Estão a comprar, muitas vezes, acima do valor de mercado. Como aquela pessoa que vai a um leilão, sem saber ao certo para quê, mas com pressa de mostrar que arrematou alguma coisa. Aqui no caso, são sempre mais do que casas e acima de tudo são votos. Ou intenções de votos.
E eu até compreendo o desespero dos nossos Autarcas. No final de contas, é difícil cumprir metas de habitação quando não se tem stock, terreno urbanizado ou um plano minimamente coerente. E, em 308 câmaras municipais, o difícil mesmo é encontrar aquela (ou aquelas) Autarquias que, no que na Habitação diz respeito, até sabem, minimamente, o que estão a fazer e, helás, até têm um plano.
Porém, a estratégia de comprar caro só para cumprir calendário (ou tentar angariar votos) acaba quase por ser o equivalente a tapar uma infiltração com papel de embrulho: até pode parecer bonito de fora, mas o problema continua lá.
Entretanto, os jovens — essa espécie cada vez mais em vias de extinção no centro das cidades — continuam à margem do mercado. Ironicamente, quase metade dos créditos à habitação são feitos por quem tem menos de 35 anos, mas a sua maioria está a comprometer o futuro para pagar o presente. Como? Com prestações que roçam o absurdo, casas cada vez mais pequenas e um mapa da cidade onde “acessível” acaba muitas vezes por querer dizer “longe de tudo”. E depois admiram-se que os jovens emigrem ou que prefiram alugar um quarto no estrangeiro a comprar um T0 em Lisboa por meio milhão de euros. Quem nunca?
É aqui que as Autarquias podiam — e sublinho o podiam — ter um papel estruturante e fundamental. Mas, para isso acontecer, era preciso algo mais ambicioso do que a compra de dois ou três apartamentos para a fotografia. Era necessário um plano. Uma visão. E, quem sabe, algum diálogo com o Estado e os privados.
As parcerias público-privadas são muitas vezes tratadas como um palavrão ou mesmo algo impossível de atingir. Mas, se bem desenhadas, com regras claras, objetivos públicos e fiscalização séria, podem perfeitamente vir a ser parte da solução. Os promotores imobiliários, que muitas vezes são vistos como o inimigo, também podem ser aliados, desde que lhes sejam dadas condições para construir com propósito e não apenas com lucro em mente.
Por outro lado, temos milhares de casas devolutas, prédios por reabilitar e bairros inteiros esquecidos pelo tempo e pela política. Não apenas em Lisboa ou no Porto, obviamente.
Porque não apostar numa verdadeira política de reabilitação urbana, com incentivos à reconversão do edificado e ocupação com arrendamento acessível? Porque não facilitar processos burocráticos que hoje espantam qualquer investidor minimamente lúcido? Porque não planear com base na realidade demográfica, no emprego, na mobilidade, na sustentabilidade? E porque não pensar a cidade para ciclos superiores aos quatro anos de duração de um mandato autárquico?
A resposta é tão simples quanto desconcertante: dá muito trabalho e não cabe num cartaz de campanha.
Comprar casas é fácil. Comprar bem, com critério e estratégia é, infelizmente outra conversa. O que está em causa não é perceber até que ponto é que as Autarquias devem ou não intervir no mercado. Cada vez mais as perguntas devem ser como o podem fazer e para quem o fazem, deixando, uma vez por todas, de lado a ideia tola que passa de que a gestão da habitação é apenas um mero exercício de cosmética eleitoral.
Em outubro, os portugueses vão às urnas. Seria bom que, desta vez, votassem também com base na forma como os seus municípios e os seus autarcas tratam aquele que é o problema mais sério dos últimos anos. Porque se continuarmos a premiar remendos, nunca teremos soluções verdadeiramente dignas desse nome.
Francisco Mota Ferreira
francisco.mota.ferreira@gmail.com
Coluna semanal à segunda-feira. Autor dos livros “O Mundo Imobiliário” (2021), “Sobreviver no Imobiliário” (2022), “Crónicas do Universo Imobiliário” (2023) e “Conversas sobre o Imobiliário” (2024) | Editora Caleidoscópio.
*Texto escrito com novo Acordo Ortográfico