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Opinião
Vivemos em edifícios doentes

 

Vivemos em edifícios doentes

30 de novembro de 2021

As crises são abalos sísmicos na estrutura veloz e ritmada das culturas. Remexem nas entranhas do pensamento de uma época, e expõe as virtudes e problemas do seu tecido. A atual situação pandémica é disso um belíssimo exemplo. Ao obrigar-nos a passar mais tempo em casa, a pandemia fez-nos parar e sentir o quão desestruturados e desconexos são a maior parte dos edifícios em que habitamos. Ao destruir o ritual robotizado casa/trabalho, que transformou os nossos lares em ilustres desconhecidos, o confinamento obrigou-nos a lidar cara a cara com eles. E com tempo para refletir e viver a casa apercebemo-nos dos seus defeitos e virtudes.

Independentemente das idiossincrasias de cada casa, houve uma necessidade que se tornou mais evidente do que todas as outras. A relevância de contacto com o exterior e com os espaços verdes. Prova disso foi o incremento de 32% (entre Janeiro e Dezembro de 2020) na procura de casas com espaço exterior. Mas existem muitas outras características, não tão evidentes ao olho destreinado, mas que definem igualmente a qualidade de vida de um individuo. E é fácil perceber porquê.

O Ser Humano não surgiu do nada há 10.000 anos, temos uma história maior que nós próprios. Durante mais de 97% da história da humanidade o Ser Humano viveu numa realidade completamente distinta da atual, deslocava-se pelo globo à procura do clima e condições que fossem mais favoráveis à sobrevivência, com a invenção da agricultura tudo isso mudou. De nómadas passamos a sedentários, e no processo tivemos de criar ferramentas que nos garantissem a nossa subsistência, já que o Ser Humano, sendo o animal menos adaptado é claramente o mais adaptável. Uma dessas ferramentas, e talvez uma das mais importantes, foi a arquitetura. Na sua forma mais simples, a arquitetura cumpre a função de um exoesqueleto de proteção contra os malefícios do mundo exterior.

A sua função última é, portanto, garantir os níveis ideais de homeostasia do individuo. Posteriormente, como acontece com qualquer arte, a resolução do problema atinge níveis de complexidade mais abrangentes e refinados. Criam-se movimentos, (empacotamentos de ideologias) numa tentativa de controlar o somatório de ideias. Atribuindo-lhe um corpo mais claro. Sempre que surge um movimento existe uma tendência para a polarização na abordagem ao problema, e em contraponto outras vozes se começam a levantar e criam um contramovimento, com direito a nome próprio, mas que por vir em contraponto transforma-se tendencialmente, também ele, numa visão polarizada da realidade. E é neste contrabalanço de ideologias que se perde o foco no essencial. Hoje vivemos envoltos de artefactos arquitetónicos, tornaram-se a nossa realidade, que nada mais são do que a cristalização de um determinado pensamento em determinada época. São, portanto, pedaços de história cristalizada. E é neles que vivemos, com as devidas adaptações, mas sempre limitadas pela estrutura desse pensamento passado, não necessariamente ultrapassado.

Numa apreciação muito básica podemos dizer que esta é a forma como o sistema cultural se organiza. Quando um movimento se insurge ou mesmo dá continuidade ao movimento anterior, está a assumir na sua génese o movimento anterior, e não o que efetivamente importa, a essência da arquitetura. Porque é que ela surgiu e a quem deve servir.

Como vimos acima, é ao Ser Humano que ela deve servir. Já que foi uma ferramenta criada por ele, e para ele, que partiu de necessidades muito claras. O Ser Humano é o elemento-chave, é nele que devemos sustentar grande parte do nosso estudo, pois é ele que descodifica a realidade. No gabinete seguimos esta filosofia criativa, à qual damos o nome US IS MORE. Nós somos mais, nós o Ser Humano. Não são os materiais, não é a forma, nem a simetria ou assimetria que devem estar na génese do problema arquitetónico, mas sim o Ser Humano. Poderão e deverão estar, mas como pensamento adjacente ao essencial e não no núcleo do problema.

Parece-me a mim primordial integrar no processo criativo de todos os arquitetos este foco no legado biológico, que é infinitamente maior em termos temporais e de influência no nosso comportamento, do que o legado cultural. Para melhor compreendermos o quão maior é a sua influência no nosso comportamento, podemos comparar a história da humanidade a um dia, 24h portanto, para nos apercebermos que durante mais de 23h59 min vivemos e fomos moldados por uma realidade completamente distinta da atual.

Não quero com isto dizer de forma nenhuma que se deve ignorar o legado cultural, ele existe e cumpre uma função primordial, mas é mais superficial. Porque se preocupa com o refinamento da peça e não tanto com o seu core, infelizmente.

E é por esta perda de foco no essencial que vivemos em edifícios doentes, que ignoram que a colocação da luz baixa não estimula a retina, que dá a indicação à glândula pineal que são horas de acordar, e que é a ideal para um quarto, ou mesmo que a presença de elementos vegetais, ainda que artificiais, relaxam o individuo, reduzindo o seu nível de stress e consequentemente aumentando o seu bem estar, o que poderá ser extremamente útil no desenho de uma clínica dentária ou hospital onde os níveis de stress são compreensivelmente mais elevados.

Aprofundemos então o conhecimento sobre o Ser Humano para que possamos tornar a arquitetura verdadeiramente relevante e intemporal.

Paulo Merlini

Arquiteto e responsável pelo atelier Paulo Merlini Architects

*Texto escrito com novo Acordo Ortográfico