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Notas sobre a reforma do arrendamento urbano

12 de fevereiro de 2015

A nova Lei do Arrendamento Urbano (Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto) procedeu à alteração do regime jurídico do arrendamento urbano, alterando o Código Civil, o Código de Processo Civil e a Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro.

Com a referida lei, integrada num conjunto legislativo mais amplo destinada à reabilitação urbana, o legislador pretendeu revitalizar o mercado do arrendamento, o qual se encontrava praticamente estagnado, dado o insucesso das reformas anteriores.

Assim, o legislador, obedecendo a metas que foram impostas pela “Troika”, alterou o regime substantivo da locação, criou um regime transitório para contratos de arrendamento celebrados antes do NRAU (27/06/2006), visando a transacção destes para o novo regime, e, por fim, criou um procedimento especial de despejo destinado a permitir a recuperação do local arrendado por parte do senhorio, num prazo, que se espera, relativamente curto.

No que respeita à alteração do regime substantivo, isto é, do Código Civil, as principais alterações que julgo merecer destaque são as seguintes:

  1. relativamente à resolução extrajudicial com fundamento no não pagamento de rendas, o legislador encurtou o prazo de mora por parte do arrendatário de três meses para dois meses, sendo que a resolução fica sem efeito se o inquilino puser termo à mora, pagando a renda e a indemnização de 50% sobre o valor daquela, no prazo de um mês.
  2. ainda relativamente à resolução extrajudicial passa a mesma a ser possível em termos procedimentais, através de carta registada com aviso de recepção, desde que as partes hajam convencionado o seu domicilio no contrato de arrendamento.
  3. foi criada uma nova causa de resolução do contrato de arrendamento, sem tradição no nosso sistema jurídico, a qual permite ao senhorio resolver o contrato caso o arrendatário se constitua em mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas,  num período de 12 meses.

Esta nova causa de resolução para além de não decorrer de qualquer imposição da “Troika”, sendo da exclusiva responsabilidade do legislador português, revela-se de difícil compatibilização com determinadas normas já existentes, nomeadamente com o previsto no artigo 1042º do Código Civil que permite ao inquilino fazer cessar a mora desde que pague a renda em dívida, acrescida da respectiva indemnização legal.

No que se refere ao regime transitório, o legislador manteve a distinção que já vinha da versão originária da lei n.º 6/2006, entre, por um lado, contratos habitacionais celebrados na vigência do RAU (Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro) isto é, entre 15 de Novembro de 1990 e 27 de Junho de 2006) e contratos não habitacionais celebrados depois da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 257/1995 de 30 de Setembro – art. 26.º do NRAU -, e, por outro lado, contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU e contratos não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 257/95 – arts. 27.º a 58.º do NRAU.

Quanto aos primeiros contratos, a principal inovação consiste no poder atribuído ao senhorio de denunciar livremente os contratos até então vinculísticos, salvo se o arrendatário tiver idade igual ou superior a 65 anos ou tiver uma deficiência com grau de incapacidade superior a 60%.

Esta é uma solução criticável na medida em que se reporta a um período em que as partes eram livres de escolher o regime temporal do contrato de arrendamento – contratos vinculísticos (hoje denominados de duração indeterminada) - e contratos com prazo certo.

Atendendo a que foi vontade das partes fixarem um regime temporal vinculístico, não se compreende que o legislador venha agora sobrepor-se àquela vontade, permitindo ao senhorio denunciar o contrato de arrendamento para o fim de dois anos.

Quanto aos segundos contratos (contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU e contratos não habitacionais celebrados antes do DL 257/95), a principal alteração traduz-se no regime de correcção extraordinária das rendas.

Como é consabido, este regime tem início sob o impulso do senhorio, o qual deve comunicar ao arrendatário a sua intenção quer em promover a transacção do contrato para o NRAU quer em proceder à actualização da renda.

A essa comunicação deve o arrendatário responder no prazo de 30 dias, sendo que a falta de resposta vale como aceitação da renda e do regime temporal do contrato propostos pelo senhorio.

Trata-se de uma solução em que o silêncio da parte tem eficácia negocial pelo que na falta de resposta pelo inquilino fica o mesmo exposto a consequências que se podem revelar social e economicamente prejudiciais.

Com efeito, não respondendo o arrendatário no referido prazo de trinta dias, poderá o não estar em condições de suportar a renda proposta pelo senhorio, vendo-se obrigado a restituir o local arrendado.

Creio que da comunicação feita pelo senhorio deveria constar, sob pena de ineficácia da mesma, a informação do prazo de que o inquilino dispõe para responder (o próprio prazo de 30 dias para responder é escasso) e das consequências decorrentes da falta de resposta.

Por último, é criado um mecanismo especial de despejo, de natureza essencialmente administrativa, mas que pode transitar para uma fase contenciosa.

Este procedimento especial de despejo começa por correr os seus termos no Balcão Nacional de Arrendamento (BNA), devendo o senhorio ali apresentar, directamente ou através de advogado ou solicitador, o respectivo requerimento de despejo – se for através de advogado ou solicitador deverá este fazê-lo via electrónica, sob pena de multa!

Refira-se, que o conceito de “Balcão” dilui a importância simbólica da justiça numa matéria que tem como fim a efectivação da cessação do arrendamento, nos casos de incumprimento por parte do inquilino da obrigação de restituir o local arrendado, em que este pode opor-se, em fase contenciosa, àquela efectivação, obrigando, nesse caso, à remessa do processo para o tribunal. Por outro lado, a atribuição da fase de execução do despejo a um agente de execução ou a um notário dissolve, mais uma vez, as fronteiras das profissões jurídicas.

Recebido o requerimento o BNA promove a notificação do inquilino para ou desocupar o local arrendado, ou deduzir oposição, e/ou requerer o deferimento da desocupação com fundamento em razões sociais imperiosas.

O procedimento especial de despejo tem uma tramitação diversa consoante haja ou não oposição por parte do arrendatário. Designadamente o senhorio não necessita de advogado, sendo, no entanto, a sua constituição obrigatória quando exista oposição, sendo que essa obrigatoriedade deveria existir desde o início do procedimento.

A execução de despejo coloca uma questão de (in)constitucionalidade, pela circunstância de apenas ser obrigatória a prévia autorização judicial para a entrada imediata no imóvel arrendado, quando o inquilino não o desocupe de livre vontade ou não cumpra o acordo sobre o prazo de desocupação, não sendo já necessária a prévia autorização judicial nos casos de arrendamento para fins habitacionais em que o agente de execução, notário ou oficial de justiça verifique que no espaço arrendado não se encontram pessoas e hajam indícios de abandono. Com efeito, a norma constante do n.º 2 do art. 34.º da Constituição da República Portuguesa apenas permite a entrada em domicílio contra a vontade de quem nele reside, desde que ordenada pela autoridade judicial competente, o que é directamente violado nos supra referidos casos em não se encontrem pessoas e existam indícios de abandono do local arrendado. 

Guilherme Figueiredo
Presidente do Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados