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Entrevistas

 

A reabilitação está a ser abordada com demasiado facilitismo

14 de dezembro de 2016

Vítor Cóias, presidente da GEcORPA, o Grémio do Património, em entrevista ao Diário Imobiliário, coloca sérias questões sobre o mercado actual e critica a direcção que algumas medidas tomaram, nomeadamente na reabilitação urbana e na vertente especulativa dos negócios imobiliários.

Como vê o mercado imobiliário actual?

Com muita preocupação. A reabilitação urbana acelerou nos dois últimos anos e está a avançar nas principais cidades num clima de demasiada permissividade: O enquadramento legislativo e regulamentar continua a ser o da construção nova. O diploma-chave, o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, data do século passado. Tem origem numa época em que dominava a construção nova e a reabilitação do edificado era uma actividade muito secundária. O diploma soma já, à presenta data, 14 alterações: uma autêntica manta de retalhos.

A entidade reguladora do sector, que atualmente dá pelo nome de IMPIC, à medida que vai mudando a designação vai-se demitindo da sua função fiscalizadora e disciplinadora do sector.

Em resultado, as intervenções são concebidas e realizadas, salvo raras exceções, por entidades sem a necessária qualificação.

Os principais municípios do país, à mingua de recursos financeiros, submetem-se aos desejos do sacrossanto investimento - estrangeiro ou nacional - veiculados pelas poderosas associações do setor do Imobiliário e da Construção (I&C), de há alguns anos para cá confederados para melhor exercerem a sua pressão sobre os decisores políticos.

Um inquérito feito já este ano pela CBRE, uma grande multinacional do imobiliário, permitiu constatar que 96% do investidores elegeram como principal motivação para investirem no imobiliário português a “expetativa de bons lucros”. Se este apetite pelo lucro não for devidamente controlado por um quadro legislativo e regulamentar bem adaptado, temos a receita para o desastre:

É o que está a acontecer: a atividade do I&C está a ter uma impacto negativo sobre os centros e bairros históricos e a desvalorizá-los.

Na Grande Lisboa e no Algarve há, ainda, o problema dos sismos: as intervenções de reabilitação que estão agora em curso com grande intensidade por todo o país, estão a aumentar a exposição de pessoas e bens ao risco sísmico. Mesmo aquelas obras que pretendem melhorar o comportamento sísmico dos edifícios podem não oferecer essa garantia, porque foram mal projectadas, ou mal executadas, ou as duas coisas: vide o caso da escola de Amatrice, que ruiu, embora tivesse sido estruturalmente reabilitada há pouco tempo.

Qual a sua opinião sobre as alterações legais relativamente aos impostos sobre o património?

Eram de esperar. O potencial do parque imobiliário português como fonte de receita fiscal foi das primeiras coisas em que a Troika reparou. Nos anos do virar do século a construção habitacional foi uma actividade frenética em Portugal. Em 2001 construíam-se casas novas à razão de uma em cada cinco minutos, dia e noite, sábados domingos e feriados. Em resultado, Portugal é hoje, a seguir à Espanha, o país da Europa com mais pessoas a viver em casa própria. Para além disso, tem cerca de 800 mil casas devolutas, a que se somam mais umas centenas de milhar de segundas e terceiras residências.

O adicional ao IMI só se aplica a patrimónios que excedam os 600 mil euros, o que só vai atingir quem que tem casas exageradamente grandes e luxuosas, ou quem investiu demasiado em construção e “acumulou” imóveis. É o reverso da medalha.

Na medida em que desincentive o investimento em casas demasiadamente grandes, portanto com uma “pegada ecológica” excessiva, e na medida em que permita canalizar o investimento para setores de maior valor acrescentado que a construção, até pode ser um imposto benéfico, respectivamente para o ambiente e para a economia.   

Considera a reabilitação urbana a principal actividade do sector neste momento?

Sem dúvida, para o bem e para o mal. Para o bem, porque corresponde a uma redução da construção nova, uma atividade sôfrega de recursos financeiros, que fazem falta em sectores de actividade mais produtivos e eficazes a gerar a riqueza de que o país precisa “como pão para a boca”.  Assegurar os direitos constitucionais das pessoas custa dinheiro, que só é gerado nas empresas capazes de produzir bens e serviços de elevado valor acrescentado e, de preferência, transaccionáveis. É para aí que devem ser canalizados os recursos financeiros.

Em coerência com esta lógica, o GECoRPA tem defendido que o crédito à compra de habitação só deverá ser concedido no caso de edifícios reabilitados de acordo com as boas práticas, nomeadamente do ponto de vista energético e sísmico.

Para o mal, porque a reabilitação está a ser abordada com demasiado facilitismo, está a promover a “turistificação” dos maiores centros históricos, como é o caso de Lisboa e do Porto, e está a aumentar a exposição ao risco sísmico.      

Qual a sua opinião sobre a reabilitação que se está a realizar nos centros históricos? Alguns especialistas consideram que está apenas a ser 'maquilhada' a cidade, concorda?

Concordo. Muitos centros históricos precisam que se chame uma equipa médica competente e, em vez disso, estão a chamar-se esteticistas amadores. Com a “turistificação” em curso, salvo algumas exceções, como é o caso de Guimarães, os centros históricos estão a ser esvaziados dos seus moradores e actividades tradicionais, de que só ficam alguns arremedos “para turista ver”. Os edifícios passam a ser cenários e os turistas que passaram a noite em hotéis ou alojamentos locais de um lado da rua, cruzam-se de manhã com outros que fizeram o mesmo do outro lado da rua. Não vão achar isso “very typical”, e, para o ano que vem, hesitarão em cá voltar.

Também algumas vezes referem que a reabilitação é destinada apenas para um nicho de mercado. É da mesma opinião?

Grande parte da reabilitação, sendo financiada sobretudo por capitais privados, está a ter lugar nas melhores zonas das cidades, aquelas onde a expectativas de valorização são maiores. As mais das vezes o investimento traduz-se numa mudança de uso dos edifícios, que passam a destinar-se a fins turísticos ou a escritórios. Os poucos que continuam a ser destinados à habitação são acessíveis, através da compra ou do arrendamento, apenas a uma clientela de elevado poder económico. Com isto, os moradores tradicionais são “chutados” para os dormitórios suburbanos e a renovação por meio dos casais jovens é inviabilizada, porque não têm, em geral, recursos financeiros suficientes. À “turistificação”, vem, assim, juntar-se a “elitização” das áreas urbanas reabilitadas.

O programa “Reabilitar para Arrendar”, que está a ser promovido pelo IHRU não terá eficácia para combater este fenómeno. Desde logo, porque o montante da linha de crédito é reduzido. São 50 milhões de euros para todo o País, sendo que, só a Câmara Municipal de Lisboa, estimava há poucos anos, o custo da reabilitação da cidade em 8 mil milhões. Por outro lado, o compromisso do promotor em aplicar a renda reduzida só se mantém enquanto o financiamento concedido pelo IHRU não for liquidado.   

Qual a verdadeira importância do investimento imobiliário para a economia portuguesa?

Não há secção de imobiliário de nenhum jornal que não exulte com o crescimento do investimento imobiliário em Portugal, em particular em Lisboa, no Porto e no Algarve.

De facto, um estudo da Jones Lang LaSalle, uma das maiores multinacionais do negócio imobiliário, mostra que o investimento no imobiliário mais do que duplicou todos os anos, de 2012 para cá. No entanto, o crescimento do PIB mantém-se anémico e o de 2016 já foi, até, várias vezes revisto em baixa.

Por outro lado, a expectativa de bom lucro a curto prazo acentua a vertente especulativa do negócios imobiliário e o risco de formação de “bolhas”, que permitem ganhos fabulosos para alguns, mas cujo colapso arrasta depois o sistema financeiro e se faz sentir nas famílias e no contribuinte.

John Chambers, presidente da Cisco, na sua intervenção durante o Web Summit, deu um exemplo do tipo de investimento estrangeiro que interesse ao país: o capital de risco, aplicado em empresas tecnológicas, capazes de criar empregos de elevado nível de qualificação e produzir bens e serviços transacionáveis de elevado valor acrescentado. É assim que se pode fazer crescer o PIB, não com o I&C.

O contributo do I&C para o desenvolvimento sustentável do país tem de ser dirigido noutros sentidos, que exigem uma visão de longo prazo: alguns exemplos: Reutilização compatível de edifícios classificados; Reabilitação “amiga do Património” de construções, aglomerados e sítios degradados ou em risco; Reabilitação “amiga do Património” de conventos abandonados, casas senhoriais, Recuperação de “brown fields” (zonas industriais ou de exploração mineira abandonadas), etc.