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A Exposição do Mundo Português e o lugar de Belém

9 de maio de 2017

De facto, a memória dos homens é semelhante àqueles viajantes fatigados que se desembaraçam de alguma bagagem inútil em cada paragem. Assim chegarão de mãos vazias e nus ao lugar onde vão dormir e serão, no dia do grande despertar, como crianças que nada sabem de ontem

Marguerite Yourcenar, O Tempo esse grande escultor

 

Os lugares que percorremos vão, aos poucos, perdendo para quem os vive a memória da sua história. É assim hoje, foi assim ontem e será assim amanhã.  É, no entanto da acumulação de histórias e vivências que adquirem o espírito que lhes assiste.

Como muitos outros locais, Belém não foge a esta regra. Habitualmente a este lugar associa-se, apenas o arranque dos Descobrimentos, devido aos seus monumentos principais - o Mosteiro e a Torre – e, por vezes, à presidência da República por aqui se encontrar a residência oficial do Chefe do Estado. Mas, as histórias de Belém, também são outras. Para além de palco privilegiado das navegações ultramarinas, será também escolhido por grandes casas senhoriais para a construção de palácios, não só devido ao prestígio do local, como pela suavidade do clima e pela beleza da paisagem. Quando D. João V aqui adquire várias quintas, Belém iniciou a sua ligação à Casa Real. A ida da corte para o Brasil, em 1807, devido à iminente chegada de Junot, as lutas liberais que dividiram o país entre 1828 e 1834 e a extinção das ordens religiosas em consequência directa da vitória do liberalismo, acabarão por condenar este lugar a um destino mais prosaico, o de arrabalde rural e fabril da Lisboa oitocentista.

Hoje não é fácil imaginar tal faceta camponesa e operária paredes-meias com os Palácios reais de Belém e da Ajuda mas foi de facto assim. Tal como temos dificuldade em reconstituir mentalmente a imagem da família real a iniciar a moda dos banhos terapêuticos junto à Torre de S. Vicente, moda que irá alastrar, primeiro, às praias vizinhas e, em 1870, ainda pela mão da família real, a Cascais.

 

As torres fumegantes das Companhias Reunidas de Gás e Electricidade ao lado da Torre de Belém…

 

Saídos os frades dos Jerónimos, em 1834, ficou o Mosteiro entregue à Real Casa Pia, instituição benemérita, concebida por Pina Manique para protecção da infância desvalida. Para a sustentar será doada  à Casa Pia a extensa cerca monacal. Esta depressa começa a ser cultivada. Até meados do século XX, a envolvente dos Jerónimos ainda era pontuada por hortas, olivais, pomares e searas ondulantes…

Mas nem só de pão vive o homem e, os que não tinham terrenos agrícolas vão apostar em pequenas indústrias (estamparias, curtumes, cordame, entre outras). Começam a proliferar desde meados de oitocentos na zona de Belém e não tardam a surgir alguns bairros operários. Em 1887, surge uma estrutura fabril de maiores dimensões, a fábrica de gás, das recém-criadas Companhias Reunidas de Gás e Electricidade, com as suas duas chaminés fumegantes e os seus depósitos de carvão a céu aberto. O local escolhido para a instalação desta fábrica foi, pasme-se, as traseiras da Torre de Belém, hoje classificada como Património Mundial da Humanidade.

Mal se soube desta intenção, os protestos não se fizeram esperar, tanto na imprensa como pela voz dos intelectuais da época. Bordalo Pinheiro será um dos que levantará a bandeira da contestação usando as páginas dos seus jornais António Maria e Pontos nos iis.

 No Diário de Noticias de 17 de Setembro de 1886 lia-se num editorial do historiador Francisco Sousa Viterbo «Nos annaes do vandalismo artístico não conhecemos atentado que se lhe possa comparar.»

Ramalho Ortigão, que para além de ter sido um dos grandes escritores do seu tempo foi um acérrimo defensor do património, tendo deixado uma obra notável intitulada O Culto da Arte em Portugal escreverá a propósito da nova fábrica «[Agora] a Torre de Belém emparceira-se com a chaminé do mais vil e sórdido barracão, a qual sacrilegamente a cuspinha e enodoa com salivadas de um fumo espesso, gorduroso e indelével, como se a incomparável jóia, d’esse mármore, que o sol portuguez, sobredourara pelos afagos de três séculos, houvesse sido tão subtilmente cinzelada pelos artistas manuelinos para escarrador de mariolas (…).

Apesar de todos os protestos, a obra fez-se e nem as démarches da última soberana portuguesa para impedir este disparate tiveram efeito. Muitos anos mais tarde, a rainha D. Amélia contará, em Dezembro de 1938, ao redactor da Ilustração Portuguesa: «Talvez você (a Rainha tratava-me por você) não saiba o que fez esta pobre senhora para que se não pusesse o monstro do gasómetro ao pé dessa jóia de arte que é a Torre de D. Manuel. (...) escrevi, pedi, supliquei aos ministros das obras públicas. Zanguei-me, esgotei influências, macei toda a gente, e nada! (...) Cada dia vejo propostas, ideias, inovações que nos apaixonaram há 30 anos. E pelas quais inutilmente me bati. Quer um exemplo? A Torre de Belém. Vejo agora que esse extraordinário ministro Duarte Pacheco a vai desafrontar.» 

 De facto, demolir a fábrica por ocasião da Exposição do Mundo Português, era a ideia do Ministro das Obras Públicas. Contudo, nem a intenção do governo da ditadura, nem, sobretudo a vontade de ferro do ministro Duarte Pacheco conseguiram resolver a tempo os problemas técnicos e orçamentais que a deslocação da fábrica implicava. A morte prematura do ministro Duarte Pacheco em 1943, atrasou o processo: a fábrica só será demolida e a Torre desafrontada em 1950.

 

Um profuso casario encostado ao Mosteiro dos Jerónimos…

 

À margem do coração da capital, Belém foi crescendo de forma desordenada até meados do século XX. E aquilo que, um dia, o rei D. João III quis evitar - proibindo a construção de casas a sul do mosteiro - tornou-se realidade. Quando Cottinelli Telmo foi chamado para gizar o Plano da Exposição do Mundo Português foi confrontado com um casario que quase encostava ao Mosteiro e que encobria parte da sua fachada tanto a poente como a nascente. Apesar de todos os protestos e dramas humanos, as demolições que então se fizeram restituíram ao Mosteiro a sua dignidade desafrontando-o de construções, muitas das quais de baixa qualidade arquitectónica.

 

Feira popular e idas a banhos…

 

Mas voltemos à viragem do século XX e ao que então se passou.

Local de veraneio, Belém teve uma praia concorrida, que chegou a ser frequentada, como se referiu, pela família real. Entre as diversões de final de verão contava-se a feira, realizada, em Outubro a partir de 1900, nos terrenos fronteiros ao Mosteiro, chegando até à estátua de Afonso de Albuquerque. A afluência dos lisboetas era garantida quanto mais não fosse para ver a Grande Suspensão Magnética ou a Mulher Hermafrodita.

Menos popular, reservado às elites o Hipódromo de Belém, recebia não só corridas de cavalos, frequentadas pela Casa Real como, posteriormente, gincanas de automóvel. Aqui começaram também as primeiras experiências aéreas em Portugal, a 27 de Abril de 1910, como evoca a Ilustração Portuguesa. O francês Julien Mamet pilotando um Blériot XI levantará voo do Hipódromo de Belém, sobrevoando os terrenos da Casa Pia, bordejando o rio e aterrando em triunfo no ponto de partida.

 Doze anos mais tarde, a 30 de Março de 1922, a bordo do Hidroavião Lusitânia, os pilotos Gago Coutinho e Sacadura Cabral, escolherão como local de partida da Primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul as águas do Tejo junto à Torre de Belém. Aliás, será neste local que, até à criação do aeroporto marítimo de Cabo Ruivo, na década de 1930, continuarão a amarar os hidroaviões.

 Junto ao rio, na doca fronteira aos Jerónimos encontravam-se as instalações de apoio aos primeiros submarinos portugueses a que normalmente se chamava a “ Barracaria dos Submergíveis”. Serão desmanteladas com o reordenamento de território feito para a Exposição do Mundo Português. Esta intervenção, idealizada por Cottinelli Telmo e sua equipa, acabou por determinar urbanisticamente, até hoje, a zona de Belém. Já depois da morte de Cottinelli, foram demolidos os dois grandes pavilhões que ladeavam a Praça do Império e o arquiteto Cristino da Silva para aqui projectará dois edifícios que nunca chegarão a ser construídos. Pensou-se num Palácio do Ultramar e num Museu de Arte Contemporânea para o espaço ocupado, respectivamente, pelos Pavilhões dos Portugueses no Mundo, de Honra e de Lisboa.

 

O Centro Cultural de Belém e o Museu dos Coches «fecham» a praça…

 

Desaparecidas as construções referidas, ficava por fechar a Praça do Império. Isto levará no final da década de 1980 à construção do Centro Cultural de Belém no local do Pavilhão dos Portugueses no Mundo. Apesar de não coincidir com a localização do Pavilhão de Honra e de Lisboa que fechava a Praça a nascente, a construção do novo Museu dos Coches acaba por estar associada a esta ideia. 

Belém é sem dúvida um dos lugares portugueses de maior carga simbólica. Não foi por acaso que o Mosteiro dos Jerónimos foi escolhido, em 1985, para a assinatura do Tratado de Adesão à CEE e que em 2007 aqui se assinasse o Tratado de Lisboa.

A riqueza e diversidade da História e das histórias deste local – motivo de inspiração há séculos para artistas nacionais e estrangeiros, mil vezes fotografado – a que acresce o papel desempenhado pela Exposição do Mundo Português, tudo isto tornava obrigatória a explicação deste lugar.

Foi este o desafio lançado por António Lamas, presidente do Centro Cultural de Belém. E assim surgiu “ A Exposição do Mundo Português, a explicação de um lugar” de que este livro seria parte integrante. Não tendo sido possível fazer a exposição ficou o livro com textos da equipa convidada por António lamas e trabalhos de investigadores especializados em diversas áreas. É o caso de José Sarmento de Matos no que se refere à História de Lisboa, de João Paulo Martins  na temática da Exposição do Mundo Português, de Margarida Acciaiuoli sobre o Museu de Arte Popular  e de Patricia Bento de Almeida na abordagem das questões urbanísticas posteriores a 1940.

Quisemos não ficar por aqui e juntar testemunhos mais pessoais. Para isso convidámos Isabel Cottinelli que desfia recordações do seu pai e da Exposição do Mundo Português e Mafalda Ferro, presidente da Fundação António Quadros e neta de António Ferro. Por último incluímos excertos de um manuscrito de Cottinelli Telmo - já publicado por João Paulo Martins na sua tese - que narra na primeira pessoa o que foi fazer a Exposição do Mundo Português.

Tratou-se, porventura, da mais importante e grandiosa obra de propaganda da ditadura. Mas não deixou de representar, também, a afirmação colectiva dos maiores artistas plásticos, escultores, arquitectos e engenheiros portugueses, muitos dos quais opositores conhecidos do regime. Realizada em 15 meses, com todos os condicionamentos ditados por uma Europa em guerra, só foi possível graças ao empenho, à capacidade de trabalho e à “carolice” de todos os que nela participaram, do engenheiro ao maquetista, do arquitecto ao estucador. Todos acreditaram no projecto e quiserem vê-lo concluído.

Não estamos a falar dos que, como Júlio Dantas, só detinham cargos honoríficos e apenas se preocupavam com a pompa e a fama. Estamos a falar de todos os que sacrificaram as horas de dormir e de comer, se sentaram à volta do mesmo estirador, trabalharam em equipa e sacrificaram o seu conforto e o da família em prol do projecto. Foi , por exemplo, o caso de Jaime Martins Barata que durante meses transformou a sala de jantar em atelier, retirando mesmo as janelas para poder pintar os painéis relativos à Tomada e Defesa de Lisboa. Empenhamento e entusiasmo igual só muitos anos mais tarde se veria entre muitos dos que trabalharam na EXPO’98.

 Esperamos que A Exposição do Mundo Português, a Explicação de um lugar nos ajude a não chegar “de mãos vazias e nus” e que não sejamos como as “crianças que nada sabem de ontem” de que falava Marguerite Yourcenar.

 

Margarida Magalhães Ramalho

 

Nota: Subtítulos da responsabilidade do DI