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Um século de oportunidades perdidas – Parte I

22 de novembro de 2021

Pode não parecer, mas completaram-se, em 2018, 100 anos sobre as políticas públicas de apoio à habitação em Portugal, quando o Governo de então aprovou o primeiro diploma que estabeleceu as condições de incentivo, pelo Estado, à construção das Casas Económicas. O diploma aprovado estabelecia as condições de expropriação de terrenos, de promoção, de conceção e de arrendamento do que eram conhecidos como as “casas baratas”.

Um século depois, olhamos para trás e vemos que tudo mudou para ficar, (quase) tudo na mesma. Casas baratas são, aos olhos de qualquer um dos intervenientes no sector – inquilinos, promotores imobiliários, proprietários ou Estado – uma miragem. E, se para algum dos stakeholders as casas são baratas é porque, sejamos concretos, alguém está a assumir custos adicionais para que assim seja, onerando-se uma parte para benefício da outra. Não há, infelizmente, volta a dar neste ponto.

No último artigo quis desmontar a ideia que existe de que Portugal é conhecido, erradamente, por ser um País de proprietários. E expliquei que nada é mais falso do que esse pressuposto, quando a maioria das habitações pertencem à Banca, com as famílias a emprenharem-se décadas para assumirem o pagamento dos juros e do empréstimo. Ou como a Banca, falida, é proprietária de inúmeros imóveis, que tenta vender a todo o custo. Ou como alguns imóveis estão fechados há anos intermináveis, porque as famílias não se entendem nas heranças ou os proprietários não querem perder dinheiro a colocar estes activos num mercado de arrendamento que, tendo tudo para ser competitivo, não o é.

Por outro lado, podemos encher a boca com o direito consagrado em termos uma habitação condigna – Artº 66 da Constituição da República Portuguesa (CRP) que, no seu número 1 estipula que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar” – que não será certamente por um passe de mágica que tal vai acontecer.

Mas vamos debruçarmo-nos um pouco mais sobre o que diz a Lei Fundamental para percebermos o quão estamos a anos-luz de uma realidade ideal.

Neste mesmo artigo, os legisladores estipularam que cabe ao próprio Estado assegurar este direito e estabelecem, por isso, algumas responsabilidades acrescidas. Ao Estado cabe (nº 2) “programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social”; “Promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais”; “Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada”; “Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução”.

É igualmente estabelecido que “o Estado adoptará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria”, que caberá ao Estado, às regiões autónomas e às autarquias locais a definição “das regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo, e procedem às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística”. Por fim, assegura-se que “é garantida a participação dos interessados na elaboração dos instrumentos de planeamento urbanístico e de quaisquer outros instrumentos de planeamento físico do território”.

Optei por transcrever o artigo, os seus números e respectivas alíneas na íntegra, para que se possa perceber que, entre o que se estabelece na CRP, a vontade do legislador e toda uma panóplia de documentos, estudos, legislação criados sobre a Habitação nos últimos 100 anos e a realidade crua dos números há, infelizmente um fosso que, ao invés de se estreitar, tem vindo a alongar-se. Hoje em dia, mais do que pensar-se em soluções esparsas para o problema da habitação é necessário e urgente encarar o problema de uma forma global, com políticas integradas que sirvam e se apliquem a todos os intervenientes. Algo que terei que deixar para a segunda parte deste meu artigo onde, espero, poderei finalmente responder ao desafio ao qual me lancei no artigo anterior: como vamos conseguir melhor Estado?

Francisco Mota Ferreira

Consultor imobiliário